20070219

Blogosfera e ironia

A rapidez da blogosfera, e em particular dos seus comentários, é absolutamente insensível a qualquer espécie de ironia, como prova a "discussão" que mantive aqui com AA d'O Insurgente. A ironia na blogosfera te transforma em obscuro, ou no caso suicida de que te expliques, nem que seja com bonecos, em contraditório. Acontece que a blogosfera não só é insensível à ironia como já desconhece o seu significado. Ocorre ironia quando, pelo contexto, pela entonação, pela contradição de termos, sugere-se o contrário do que as palavras ou orações parecem exprimir.

20070218

A via bolivariana da infâmia

Vale a pena que todos os defensores, ou que simplesmente ainda possuem dúvidas sobre a vilania que acompanha os "novos regimes socialistas" latino-americanos, leiam notícias como esta do El País. Chávez, Morales e, é claro, o mais que velho Fidel Catro, aceitam de braços abertos e com estatuto de aliados os terroristas bascos da ETA. Eles não são maus por serem socialistas: são maus e ponto final.

20070216

A culpa é da monarquia

Ao ver a forma conciliadora com que o primeiro-ministro Sócrates trata a regulamentação da nova lei do aborto, que não seria em um princípio, esquecendo Cavaco, de se esperar no rescaldo de uma vitória quase absoluta do seu governo absolutamente maioritário, não pude deixar de pensar que para Espanha, no seu actual quadro de guerra civil política, seria bom terem um presidente da república em lugar de um rei. A monarquia espanhola actual é herdeira do franquismo, e é provavelmente também consequência de que Franco e os seus achavam que não seria realmente necessária a existência de um contra-poder real mais do que apenas excepcional ao governo, pelo menos de acordo com a sua mundividência fascista. O contra-poder presidencial é no entanto contra apenas do ponto de vista do governo, especialmente é claro se pertence a uma cor política oposta, mas é simplesmente um poder, com todos os efeitos relaxantes que isso supõe, para os filiados no eventual "partido com assento presidencial". O sistema parlamentar republicano, como bem exemplifica o caso português, termina por em geral facilitar as condições para que de um lado, o executivo, se veja obrigado a contemporizar, e do outro se sintam mais estimulados em realizar uma oposição menos histriónica e desesperada. Retira-se assim parte importante do ruído político pouco saudável que agora se vive em Espanha, e agora mais vivo que nunca, no momento do início do julgamento dos acusados pelo 11M, que parte das fileiras dirigentes da direita popular espanhola insiste ridiculamente em transformar em obra de uma conspiração islâmica-etarra-policial-socialista. Mas também se sabe que algumas leis que o executivo socialista de Zapatero aprovou (vendo antes o que era justo e razoável tal como outros um dia o fizeram no caso do aborto só agora despenalizado em Portugal), sem necessidade de referendos, mas tão pouco sem aprovação da maioria da população e de qualquer forma tal como vinham no seu programa de governo, não haveriam sido possíveis se houvesse agora em Espanha um sistema e uma situação política como a portuguesa actual. A verdade é que também aqui se prova que quase tudo tem um lado bom e outro mau, e a verdade também de que sem ruído, muito ou pouco, não há nozes, poucas ou muitas.

E pur si muove!, dizem eles

Hilariante que AA do Insurgente "se considere" a si, ao seu amigo AAA e ao seu ídolo checo comum, o primeiro ministro Vaclav Klaus, como herdeiros de Galileu na sua luta contra a "escolástica" comunidade científica. O mundo ao contrário este, onde tantos comentadores políticos e políticos de uma certa direita alienada, em geral fundamentalista cristã pelo menos no mundo ocidental, e em geral com formação científica nula em matéria de geofísica, quando não em qualquer matéria científica que seja, se consideram a si mesmos como herdeiros de Galileu, e aos cientistas, estes "aristotélicos", como a nova Inquisição. O mundo a fazer o pino no entanto é também revelador. É que as coisas mudaram, a demagogia vai a votos e nem sempre ganha, o que obriga em tais casos a que a irracionalidade, que antes se sentia naturalmente muito mais confortável na posição de verdugo, tenha agora que apelar ao estatuto de vítima.

20070213

Ainda bem

Que parte do Portugal que eu conhecia está a desaparecer. O sim ganhou com mais votos que o não no referendo anterior de resultado oposto. Ainda temos um Norte rural superpopulado de padres idosos e umas ilhas demasiadamente insulares. O Portugal profundo desaparece pouco a pouco, mas tudo bem, a gente espera.

20070209

O referendo e o Portugal que eu conheço

Se Portugal ainda é o Portugal que creio que é, e os portugueses ainda são os portugueses que creio serem, o não infelismente ganhará no próximo referendo. Chamem-me pessimista se quiserem, mas Portugal ainda é em grande parte o das suas aldeias e vilas, aquele que lembra o nome de Salazar como eterno exemplo virtude, e o outro, das cidades, das senhoras e dos senhores das aparências, provavelmente prefira continuar em caso de necessidade a abortar em Badajoz e assim aproveitarem para fazer compras, sem colocar nunca em perigo a sua imagem de católicos conservadores. Portugal sempre foi um país provinciano, por obrigação geográfica mas também por escolha própria, e apenas terá havido uma época em que uns senhores que mandavam, gostavam muito de barcos, permitindo que um país que provavelmente era o que é entrasse ainda assim nos manuais de historia do resto do mundo. Eu sei quanto amor pelo nosso provincianismo professamos diariamente no carinho com que dizemos a palavra "portuga", e o não a despenalização do aborto não é uma declaração de amor ao feto alheio mas ao nosso "portuga" pessoal.

O primeiro-ministro Sócrates teve a coragem de falar disso. Sobre a verdade de que no próximo referendo também decidimos se uma vez mais resolvemos atrasar a nossa modernidade. Que também referendamos o conformismo com nossos defeitos, e de que aí o sim é um não e o não um sim. Os defensores do não falarão e falam desde seus púlpitos católicos apostólicos romanos que colocar a questão nestes termos é ridículo, absurdo, falseador, até mesmo provinciano... Por isso, há que reconhecer a coragem do primeiro-ministro de não fugir deste ponto, o que provavelmente seria polticamente muito mais fácil mas menos honesto. A moralidade papal, o ditadorismo de nossas éticas e religiosidades pessoais sobre o útero alheio, nada disso tem muito que ver com a modernidade e tudo que ver com nosso passado de mistificações machistas. Não creio que Portugal se tenha libertado o suficiente deste passado para votar sim este fim de semana, mas gostaria de me equivocar.

Vale a pela ler a propósito disto tudo o texto de Ana Sá Lopes no DN.

20070207

Parcialidade da RTP


Hoje a RTP decidiu colocar "frente a frente" Lídia Jorge e Laurinda Alves, como partidárias do sim e do não no próximo referendo sobre a despenalização do aborto. A comparação é odiosa. Sou honesto, e entendo perfeitamente que os partidários do não considerem que a RTP, com a sua escolha de porta-vozes, contribuiu para favorecer o sim...

20070204

Salazar, Cunhal e a revolução

O facto de que Salazar e Cunhal pareçam ser, segundo os rumores que por aí andam, os mais votados até agora no concurso que a televisão pública portuguesa anda a realizar, que não tem nenhum resultado práctico e onde cada voto custa 60 cêntimos, revela (para além do facto esperável de que entre os tontos deste país abundam os extremistas de direita e esquerda) que a revolução do 25 de Abril, tantas vezes citada como a grande transformadora de mentalidades e explicadora de tantas particularidades, incluindo as eventuais diferenças de cenário político com o vizinho espanhol, ainda é suficientemente forte no imaginário português para possibilitar a entrada, bizarra em qualquer outra parte da europa ocidental, de um comunista ortodoxo em tal pódio, e ao mesmo tempo que já é tão fraca como para permitir a, eventualmente esmagadora, vitória do ditador principal responsável pelo regime contra o qual esta mesma revolução se realizou. A história não termina, se dilui.

Gosto de amanhecer e anoitecer

Caetano Veloso na canção Língua diz que gosta de ser e de estar, e sendo realmente verdade que as línguas latinas valorizaram o papel do verbo estar, pelos vistos com a mesma origem no ário sta que os verbos ingleses to stand e to stay, de uma forma que as demais línguas europeias com raiz indo-europeia não o fizeram, considero poéticamente muito mais importante, como afirmação da língua, a revisão do verso da canção na forma que dá título a este post: gosto de amanhecer e anoitecer. Ao parecer isto de que possamos dizer coisas como amanheci sozinho é algo que em Europa só dizemos portugueses e espanhóis (que aliás também compartimos tal qual os verbos ser e estar), e que viria da influência árabe na península. Descobri tal "tolice" lendo o nada tolo 'España en su Historia' de Américo Castro, que aliás é brasileiro. Diz Américo que En lugar de limitarse a percibir la existencia de un fenómeno natural (se hace de día, o de noche), el alma de la persona transforma lo percibido en creación propia, en algo que acontece dentro y no sólo fuera de la persona: anochecí, se hizo noche en mí, y yo me hice noche. (...) el árabe pasa con suma facilidad de la noción de lo que algo es por dentro a la noción de lo que es por fuera, y del mismo modo se desliza de lo subjectivo a lo objectivo, o viceversa; ambos aspectos de la realidad son reversibles. (...) Tal proceso significa que la vida psicológica del hispano-cristiano a veces adoptó hábitos musulmanes, lo mismo que imitaba usos y costumbres exteriores (besar las manos, lavar los muertos, sentarse en el suelo, etc.).* Enfim, o arabismo de que eu como português anoiteça e amanheça é algo muito mais drástico e profundamente diferenciador, não só com o inglês mas também com as demais línguas latinas, do que o facto de que eu seja ou esteja. Além de que muito mais belo.

* Não sei como Américo Castro não cita aqui outro exemplo claríssimo e quotidiano de herança árabe nos costumes espanhóis, que estiveram mais tempo como os mouros do que nós, que é o comerem todos do mesmo prato. Há uma absoluta paridade entre o almoço familiar de cuscus em Marrocos e uma família espanhola comendo paelha.

A Penalização Kitsch do Aborto

Aqueles que em Portugal defendem o não neste referendo a partir da posição de que a lei que penaliza deve existir para não ser aplicada mas dar o exemplo me parecem representar o lado mais hipócrita da personalidade lusitana. Apenas como exemplo à mão temos o Ludwig Krippahl do "Que Treta!" mas existem outros. É muito provável que esta tendência ainda venha a ganhar no próximo referendo e represente a maneira de pensar, mais ou menos consciente, de muitos portugueses. O apego aos formalismos e aversão à frontalidade é uma característica bastante acunhada em Portugal e que tem "o seu lado bom", a bonomia e pouca agressividade do seu povo por exemplo, mas que encontra em questões como esta do aborto o seu lado mais pernicioso. Em grande parte o que irá a votos no referendo ao aborto é a vergonha (e a falta de vergonha) dos portugueses na sua hipocrisia.

20070203

Aborto e Ética


A ética é o palco argumentativo onde se diz desenvolver toda a argumentação pró-feto dos defensores do não no próximo referendo ao aborto. Caso paradigmático é o de Sarsfield Cabral no DN de hoje (que se deveria ler em paralelo com as excelentes observações de JPP no Abrupto). Atrás do selo ético se desenvolve uma vez mais um tipo de argumentação que é racional na forma mas preconceituosa no fundo. Ainda assim se agradece o tom tolerante e aberto de Sarsfield já que nem sempre é regra. No entanto quando Sarsfield ataca tendências sexuais, perfeitamente compatíveis com o respeito pela liberdade e dignidade daqueles que delas participam (e não se fala aqui da pedofilia é claro), definindo estes comportamentos como imorais ou amorais, termina por dar crédito a todos quanto vemos demasiado catolicismo e pouca ética nos discursos defensores do não. Mais tarde Cabral Sarsfield coloca a discussão no lugar de sempre, entre a defesa da liberdade da mulher e o direito à vida do feto. Acontece que por mais voltas que se dê ao assunto, defender o direito à vida do feto só se faz de uma forma: sacralizando a vida do feto, de maneira a que este feto, não formado e com um grau de consciência ínfima, não só já não é visto tal qual mas pelo que pode chegar um dia a ser, com uma carga de significado que não existe e vem portanto do futuro, como também separando tudo isto da própria mãe. O futuro do feto existe e dá significado e valor a este independentemente de sua mãe, da liberade e da vontade desta. Na verdade, e ao contrário do que quer dar a entender Sarsfield Cabral, se fosse somente o estágio do nosso conhecimento racional e a parafernália tecnológica que o acompanha a base da nossa valoração do feto (e isto não é o meu desejo) a vida deste nunca poderia valer mais, e perdoem-me os mais suceptíveis pela minha clareza, que a de um rato de laboratório. Enfim, por detrás do discurso ético do não sempre a religião, e da antiga, daquela que não só busca dirigir a vida de quem a escolhe mas também a de todos os demais.

20070201

Dobragem (Dr House)

Não posso deixar de me sentir preocupado ao descobrir que aprecio muito mais ver House dobrado para espanhol do que na versão original em inglês. Logo eu, que como bom português sempre fui eterno defensor das legendas! Ainda assim reafirmo continuar a não suportar ver-ouvir alguém a dobrar Marlon Brando, apenas acontece que a voz frágil do britânico Hugh Laurie não se compara ao som grave e áspero do seu excelente dobrador espanhol. Ou será que o indelicado castelhano cola muito melhor ao mau feitio do personagem que o correcto inglês original?