20070204

Gosto de amanhecer e anoitecer

Caetano Veloso na canção Língua diz que gosta de ser e de estar, e sendo realmente verdade que as línguas latinas valorizaram o papel do verbo estar, pelos vistos com a mesma origem no ário sta que os verbos ingleses to stand e to stay, de uma forma que as demais línguas europeias com raiz indo-europeia não o fizeram, considero poéticamente muito mais importante, como afirmação da língua, a revisão do verso da canção na forma que dá título a este post: gosto de amanhecer e anoitecer. Ao parecer isto de que possamos dizer coisas como amanheci sozinho é algo que em Europa só dizemos portugueses e espanhóis (que aliás também compartimos tal qual os verbos ser e estar), e que viria da influência árabe na península. Descobri tal "tolice" lendo o nada tolo 'España en su Historia' de Américo Castro, que aliás é brasileiro. Diz Américo que En lugar de limitarse a percibir la existencia de un fenómeno natural (se hace de día, o de noche), el alma de la persona transforma lo percibido en creación propia, en algo que acontece dentro y no sólo fuera de la persona: anochecí, se hizo noche en mí, y yo me hice noche. (...) el árabe pasa con suma facilidad de la noción de lo que algo es por dentro a la noción de lo que es por fuera, y del mismo modo se desliza de lo subjectivo a lo objectivo, o viceversa; ambos aspectos de la realidad son reversibles. (...) Tal proceso significa que la vida psicológica del hispano-cristiano a veces adoptó hábitos musulmanes, lo mismo que imitaba usos y costumbres exteriores (besar las manos, lavar los muertos, sentarse en el suelo, etc.).* Enfim, o arabismo de que eu como português anoiteça e amanheça é algo muito mais drástico e profundamente diferenciador, não só com o inglês mas também com as demais línguas latinas, do que o facto de que eu seja ou esteja. Além de que muito mais belo.

* Não sei como Américo Castro não cita aqui outro exemplo claríssimo e quotidiano de herança árabe nos costumes espanhóis, que estiveram mais tempo como os mouros do que nós, que é o comerem todos do mesmo prato. Há uma absoluta paridade entre o almoço familiar de cuscus em Marrocos e uma família espanhola comendo paelha.

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